quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)


                                                     20º Capítulo


       No outro dia bem cedo, como de costume, quando a gauchada da estância botou os ossos de ponta, o andarilho já esperava de mate pronto e fogo grande; depois de um “buenos dias” em alto e bom tom, todos sentaram-se a beira do fogo pra matear e refazer o dia antes de “empessar” a lida.
        O capataz que no dia anterior percebeu que o andarilho era bem mais vaqueano e vivido do que parecia a primeira vista, sabendo já naquelas alturas que se tratava de um taura calejado, lhe perguntou se por acaso não queria uma changa; mais que ligeiro o andarilho aceitou. Quando o capataz indagou-lhe sobre o que sabia fazer, sem demora ele respondeu que fazia de tudo um pouco, que conforme viesse a volta escorava o quanto pudesse. De vereda se acertaram pra uma desmanchada de cerca lá pra o lado do banhado, segundo as previsões era serviço pra uns dois ou três dias, depois disso o andarilho já tinha firmado outro compromisso com o capataz ; ajudá-lo na carneada de um brasino aspa torcida que o patrão deixou pra municio da estância.
        Passados dois dias e meio, cerca desmanchada, o arame todo enrodilhado e por capricho o andarilho não deixou sequer um pedacinho de atílio no arame das guias. Perto do meio dia já foi se achegando pro lado do galpão e avisou ao capataz que estava pronto o serviço do desmanche da cerca velha. Sentaram-se então debaixo de um paraíso bem copado pra esperar que chegasse a hora da “bóia”; conversa vai, conversa vem, falaram sobre a carneada, sobre couro, sangria e outras “cositas más”.
Foi quando o capataz perguntou-lhe se não sabia lidar com corda, sem saber que o andarilho por sua vez trançava um preparo como poucos guasqueiros trançam hoje em dia; ao ficar sabendo de mais essa habilidade do andarilho fez a proposta de lhe garantir o pouso por mais uns dias após a carneada, desde que lhe ajudasse a estaquear, lonquear, garrotear o couro e lhe ajudar a arrumar um pouco das cordas de serviço, em troca, além do pouso, lhe daria um basto velho sovado que andava esquecido num cavalete lá num canto do galpão e um pedaço de couro para que pudesse fazer algo que lhe fosse útil já que agora era um homem de á cavalo. Já no topar a parada o andarilho lhe disse que queria apenas o couro do pescoço do boi brasino, pois nada mais lhe fazia tanta falta quanto um bom maneador para que nas voltas do pago pudesse botar o cavalo a soga quando não conseguisse um potreiro onde pudesse soltá-lo.
        Passou a tarde, caiu a noite, e quando mais um dia vinha clareando o ermo dos descampados lá estavam o capataz, o andarilho e um dos peões da estância no rumo do mangueirão onde o brasino da carneada esperava encerrado pelo momento derradeiro. Tudo certo, mesmo percebendo que o andarilho não servia pra bobo o capataz lhe pediu que sangrasse o boi pra ter certeza de suas habilidades manuais; não deu outra, foi adentrar o sangrador numa punhalada certeira e por pouco o brasino não lhe caiu por cima. Carneado o boi, carne gorda oreando no gancho, o andarilho já deu de mão numa faca “buena” e numa chaira de respeito e seguiu lonqueando o couro verde mesmo antes de estaqueá-lo. Era lindo de ver aquela humilde figura bem despachada acomodando a volta do couro no correr da perna para lonquear de cabo a rabo no maior capricho. Depois de lonqueado, estaquearam bem como manda o figurino, agora era esperar o tempo certo, para poder macetear com gana e tirar tentos parelhos e bem sovados para lhes dar a forma exata da trança dos preparos usados na lida. Como por certo levaria algum tempo, o andarilho deixou tudo combinado para voltar depois de alguns dias. Repontou seu cavalo do potreiro, apertou-lhe o basto que agora lhe pertencia bem “despacito”, alçou a perna e pegou o rumo da estrada; saíram os dois se negaceando, desconfiados, até se aprumarem mais adiante... 

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Mais um motivo


 Caros Amigos!
        
         Lhes confesso que fiquei muito orgulhoso, não por uma questão de vaidade, e sim por saber que aos poucos a vida vai mostrando o verdadeiro sentido de tudo que diz respeito ao pouco que fazemos sem querer nada mais do que cumprir a missão neste plano com o máximo de dignidade; bem por isso resolvi postar no blog uma crônica escrita pela acadêmica de comunicação social: Jornalismo (UNIFRA) Lidiana Betega, que me presenteou com suas palavras visivelmente sinceras, como todos podem conferir logo abaixo da foto que postei para dar imagem á crônica.

Fica aqui o registro da minha gratidão, e digo a Lidiana que este é mais um motivo pra que eu siga sempre do meu jeito, de cabeça baixa, cuidando o caminho, pois, penso ser melhor abaixar os olhos e elevar a alma.

     Mil Gracias Lidiana!! Que DEUS te abençõe sempre!
       
                                                        
                                          Zeca Alves e Família.

                    Crônica do homem campeiro

Cada homem do campo carrega no peito um troféu de guerra, daquele que venceu na vida, e que sabe que percorreu lonjuras pra chegar onde chegou, acima de tudo, sabe que seguiu o caminho do bem e encontrou a paz que precisava em coisas muitas vezes não valorizadas pelos demais, como a família, os amigos, um rancho simples e um mate amargo.
Na família esse homem encontra o escudo do amor, pois na sua patroa ele tem toda a segurança e carinho que precisa pra seguir em frente, e nos passitos ainda curtos de seu piá, ele percebe a semelhança que se passa de pai pra filho e com orgulho lhe dá conselhos de quem sabe o que diz. Nos amigos, ele tem parceiros de valia para as peleias da vida, e aprende a reconhecer que não tem preço ter amigos com lealdade no coração.
No rancho simples, o homem do campo entende que não precisa de muito pra viver, pois é no seu ranchito que ele tem o sossego que só a campanha lhe oferece, e olhando da sua janela, ele enxerga a pintura que Deus lhe deu, percebendo a beleza que o campo tem. 
No mate amargo que ceva de tardezita, esse homem desvenda sua essência, proseia com suas inquietudes, e em um momento sensitivo, tem a certeza que nunca estará sozinho, assim, nessa paz que se fez morada ele compõe versos de fundamento, que retratam a rotina do verdadeiro homem do campo, revelando seus sonhos madrugueiros, e colocando no papel a sua vida pura e simples.
A escuridão ainda nem se foi e ele já encilha seu cavalo, seu velho e bueno amigo, e lá se vai com o coração na espora, percorrendo mais um dia de lida e a manhãzita se espicha nas patas de seu cavalo. O campo se torna pequeno para os anseios desse homem, que possui uma sensibilidade singular, trazendo consigo a coragem de um campeiro, e que na garupa carrega tudo que precisa.
O cusco, também não abandona o homem do campo, lhe acompanha pelas volteadas do dia, e faz costado pra não deixar aquele potro matreiro se distanciar da tropilha. E é na vivência diária que esse homem percorre a faculdade da vida, e em suas veias correm um sangue de valor e sabedoria.
O sol devagarzito se amansa e num assobio compassado, o campeiro desencilha seu parceiro, e ao longe avista seu guri que vem em sua direção pra contar todo faceiro como foi seu dia, e nos braços do pai, o piá se olha no espelho. É nesta hora, quando tudo silencia, que o homem escuta a voz da plenitude, pois só no campo ele semeia a paz tão sonhada, e nos olhos sinceros de seu cavalo crioulo ele enxerga que essa foi a vida que ele sempre quis.


Dedico essas palavras a todos os homens do campo, que com lealdade galopam seus dias, mas especialmente a Zeca Alves, um artista de mão cheia que conquistou um público fiel e que reconhece todo seu talento, público este, que lhe deu o prêmio de melhor compositor na 29ª Gauderiada da Canção Gaúcha de 2011, com a letra de “Alguém mateia comigo”, na qual busquei inspiração para escrever esta crônica.  Um abraço.  Lidiana Betega, Cacequi RS.







quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

ALGUÉM MATEIA COMIGO...


                                                                                         Foto: Leonardo Gadea

      VEZ POR OUTRA ALGUÉM SE ACHEGA, DE LONGE PRO MEU COSTADO,
     VEM, ME TOMA O PENSAMENTO, E ME TRANSPORTA AO PASSADO;
    -POSSO SENTIR SUA PRESENÇA, ENXERGÁ-LO NÃO CONSIGO...
     AO DE REDOR DO BRASEIRO ALGUÉM MATEIA COMIGO.


    NO CALOR DE UM FOGO GRANDE, HÁ UM RITUAL PRIMITIVO,
    FEITO UM ELO ENTRE DOIS LADOS NUM MOMENTO SENSITIVO;
   -SENDO ASSIM, DO MEU AGRADO, DESTE MUNDO ME DESLIGO...
    ENQUANTO DO OUTRO LADO ALGUÉM MATEIA COMIGO.


    TALVEZ SEJA UM DESSES ÍNDIOS DE XUCRA SABEDORIA...
    QUE, NAS HORAS DE REMANSO, QUANDO TUDO SILENCIA,
    ME OLHA SEM DIZER NADA, FEITO QUEM OUVE UM CONSELHO;
   ALGUÉM MATEIA COMIGO COMO SE OLHASSE NO ESPELHO.


    QUEM SABE TENHA SAUDADE DE UM TEMPO QUE JÁ FOI SEU,
    E VOLTE PARA MATÁ-LA NO LUGAR ONDE VIVEU;
    ALGUÉM QUE ASSIM COMO EU, TEVE A SORTE QUE BENDIGO
    E NA IMPRESSÃO DA SEMELHANÇA MATEIA JUNTO COMIGO.


   SEGUINDO O MESMO CAMINHO DESTE ALGUÉM QUE ME ACOMPANHA,
   ENCONTRO A PAZ QUE PRECISO NA IMENSIDÃO DA CAMPANHA!
   O GALPÃO DOS MEUS INVERNOS É, POR CERTO, UM TEMPLO ANTIGO,
   POIS, DO OUTRO LADO DA VIDA ALGUÉM MATEIA COMIGO.


                  Zeca Alves - inverno/2009
                   Na costa do lajeado e na santa paz de DEUS.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)


                                                     19º Capítulo


           Ia o andarilho firmando a rédea entre os dedos, “grudadito” sobre “as cruz” do cavalo que ganhara á poucos dias numa aposta com um capataz de uma estância que havia feito pouco caso subestimando a sua fé.
           O cavalo volta e meia inchava o lombo negaceando as macegas que o vento embalava e os vultos que se mexiam no meio do “pajonal”.
            Cruzando por estes ermos, agora por bem montado, quando ao tranco do cavalo passava em frente aos ranchos de campo na volta do corredor, o andarilho mesmo sem querer chamava olhares pra fora, não só pelo jeito simples e pela estampa surrada, mas porque o seu cavalo era muito conhecido; tinha sido um cavalo muito afamado por velhaco em toda a querência; as pessoas pareciam não acreditar no que estavam vendo, pois sim, era o próprio; aquele que não carregava ninguém e acabou cedendo aos encantos do andarilho que sabia usar uma espécie de “Mirada índia” para se comunicar com os animais. Agora seus corações batiam em sintonia, seguindo o mesmo compasso do bate-bate de cascos que ditava a cadência do estradear. A cada légua vencida conheciam melhor um ao outro, foram aos poucos se tornando confidentes das mesmas penas, porém sem jamais faltar um com o outro. Pois bem... Os caminhos ainda eram os mesmos, as jornadas ainda se estendiam de um pago ao outro, mas agora a cadência do tranco largo encurtava distâncias; foi quando o andarilho resolveu refazer os rumos, retornar aos lugares que tinha estado ultimamente para ver quais as mudanças que supostamente teriam ocorrido no mesmo espaço de tempo que sua vida também mudou, mesmo que pouco, mas pra melhor.
         “Despacito”, assoviando alguma “coplita” vinda da alma pro bico afinado, o andarilho voltou a bater palmas em frente á uma estância gaúcha da fronteira, mas depois de apear a agarrar o cavalo firme pela rédea. Novamente foi bem recebido, e pelo mesmo vivente que lhe concebeu o pouso da outra vez. Da mesma forma deram “um saludo” e “buenas tardes” um pro outro. Botando confiança no andarilho que já tinha espaço reservado no galpão, o vivente lhe apontou a cancela do potreiro, mandou que largasse o cavalo “no más” e se achegasse pra perto pra tomar um mate e prosear um pouco.
           Bueno... Depois de soltar o cavalo no potreiro, o andarilho de pronto se abancou
perto da porta do galpão onde os demais mateavam tranqüilos bombeando o horizonte largo; assim se deu a comunhão de um mate “bueno” e prosa amiga que se estendeu até sonar o guiso chamado pra hora da “bóia”.
             O assunto não poderia ter sido outro, senão sobre o cavalo; de saída já lhe perguntaram de onde tinha tirado aquele cavalo e como havia conseguido amansá-lo, pois um dos peões da estância, um índio “bueno” e ginete por “demás” reconheceu o pingo “véio” tão logo firmou os olhos nele. Foi quando o andarilho lhes contou toda a história de como havia ganhado o cavalo, dessa vez ninguém duvidou de nada, porque todos gostavam muito de andar pelos rodeios da querência, e do lado de lá da fronteira, no Uruguai e Argentina e já tinham visto apresentações de homens que usam este tipo de encantamento (Mirada índia) para se comunicar com cavalos através da fé.
             Certamente que ninguém quis experimentar o cavalo, porque o mesmo índio ginete que reconheceu o cavalo já havia topado a parada num desafio de bolada e bem sabia que era “dura a galleta”.  

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)



                                                    18º Capítulo


           
    Conforme era previsto, mal e mal clareava o dia na estância e todos já se encontravam mateando ao de redor do fogo, exceto o semaneiro que havia dado de mão num xergão e num freio e saído ao tranco largo na direção do sogueiro pra fazer a recolhida; trouxe pra mangueira toda a cavalhada, inclusive os tobianos aporreados do capataz, e conforme foi ordenado embuçalou os dois e lhes atou na sombra de uma figueira grande que havia do lado de fora da mangueira, ali ficaram atados esperando o sol destapar o horizonte pleno.
     Aquela manhã seria enfim para tirar as cismas da gurizada que passava as férias na estância, e do andarilho que bem sabia como proceder quando lhe tocasse a bolada.
      O capataz por sua vez pouco sabia que a pretensão que trazia consigo havia armado uma tocaia para que a vida pudesse lhe ensinar um pouco mais, e na empáfia de querer ser o dono da verdade nem sequer percebeu que estava diante de um ser humano que por humilde estava apto a lhe mostrar na prática o jeito certo de proceder com seus iguais, e com as oportunidades que DEUS proporciona aos homens, inclusive de ficar quieto.
         Entre um mate e outro o capataz que por sinal era um índio campeiro e conhecedor da lida largava uma charadinha, ou pro rapazinho que lhe contou o acontecido, ou pro andarilho; ambos permaneciam calados, de cabeça baixa, pois era evidente que aquele homem gaúcho, vivido, responsável pelo serviço da estância, cada vez que debochava aumentava mais o motivo de envergonhar-se por ter dado com a língua nos dentes. E assim seguia:

       - Mas então quer dizer que o vivente aí é meio bruxo. Dizia se referindo ao andarilho.
       -Vai ver que um dos meus cavalos resolveu carregar alguém, com pena de dar-lhe um tombo,hahahahahaha. Gargalhava.
       -Faz não sei nem quanto tempo, até já perdi as contas da última vez que alguém conseguiu para nestes tobianos, agora vocês vem querer que eu engula esta conversinha. Se referiu ao rapazinho.
      
        Por fim veio a exclamação crucial para o aprendizado, foi quando o capataz trocou os pés pelas mãos e enfiou os pés na maneia ao afirmar que pagaria pra ver.
        O rapazinho, pelas rompantes de moço e por ter escutado tudo calado não se conteve, disse ao capataz que topava o desafio e fez a seguinte proposta:
         Ele e o andarilho arrancariam “chirca”, carqueja e outros inços com as mãos no entorno da estância e nos potreiros até que tudo ficasse limpo, se por acaso um dos tobianos corcoveasse com o andarilho; do contrário o capataz teria que lhes dar algo em troca, se acaso se confirmasse o que já sabiam que ia acontecer. Foi quando o capataz disse que daria o cavalo de presente pro andarilho e se comprometeu em ajeitar cavalo pro moço andar pelas gauchadas pro resto da vida.
         Desafio aceito, saíram todos na direção de onde os tobianos estavam atados; o capataz ainda perguntou aos dois qual dos cavalos teria sido pego no dia anterior, quando apontaram ainda ouviram outra gargalhada...

          -Ahahaha! O mais veiaco ainda por cima, eu mereço! Dizia.
          -Pois bem, fique a vontade seu. Disse ao andarilho.

         Agora era a vez do andarilho que esperou pra falar na hora certa. Pediu que todos fizessem silêncio e se mantivessem afastados; repetiu-se o ritual . passou a mão sobre as crinas do tobiano, deu-lhe um afago na tábua do pescoço, sussurrou uma espécie de oração, saltou de barriga e depois cruzou a perna pro outro lado e saiu ao tranco, andando pelo potreiro.
            Enquanto tinha gente que não sabia onde se enfiar de vergonha, tinha outros que sorriam por dentro, cheios de orgulho de comprovar o que já haviam dito; mesmo assim, diante de todos o capataz insistia em subestimar a fé do andarilho dizendo que não era possível, e que se aquele homem era capaz, ele também era; porém aos olhos de DEUS só habilitam-se aqueles que fazem as coisas de coração aberto.
            Quando o andarilho apeou na sua frente sem dizer nada, o homem lhe cumprimentou assumindo que tinha perdido, mas pediu o cavalo emprestado pra dar uma volta, tal como havia feito o rapazinho; repetiu-se outra sena, um tombo que quase matou-lhe o bicho do ouvido quando lhe atirou no chão pelo correr da paleta. Ao erguer-se do chão, o capataz perguntou ao andarilho como aquilo era possível?!
            Foi quando então ouviu da boca do andarilho que:

            -O princípio inteligente está no coração de cada um, e nem tudo é como gostaríamos. A inteligência está dentro de todos nós, basta descobri-la;  pois com boa fé ela se manifesta refletida em tudo que nos rodeia.

                Ergueu os olhos pra o céu num gesto de gratidão, “saludou” a todos e deu meia volta no rumo da estrada, que a partir de agora teria léguas por diante pra despachar de á cavalo.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)


                                                     17º Capítulo



            Depois de testemunhar o fato de o andarilho trazer a recolhida montando um tobiano “veiaco” que parecia ter se entregado meio que por encanto, os rapazinhos que estavam de férias na estância grande, pareciam não acreditar no que acabavam de presenciar; então começaram as dúvidas.
            -Será que nos enganamos? Disse um deles.
            -Devemos ter nos confundido e pegado o sogueiro. Disse o outro.
            -Só tem um jeito de sabermos o que houve; tive uma idéia... Disse o terceiro, que era exatamente o que conhecia os cavalos da estância.
Vamos pedir ao andarilho que deixe o cavalo enfrenado e um de nós se enforquilha, caso seja o sogueiro fica tudo explicado.
Foi quando pelas rompantes de moço inexperiente um deles saltou na frente se prontificando pra montar, exatamente o que havia inventado aquele brinquedo de mau gosto que acabou dando errado. Era um rapaz  muito “bueno”, desses que cismam em se tornar um índio ginete, porém nem sempre as coisas são como a gente quer. Bueno... Se foram na direção do andarilho que já estava levando a mão na cabeçada para largar o tobiano. O rapazinho com cismas de ginete lhe pediu o tobiano emprestado, dando a desculpa de ir até o açude da frente da estância para revisar umas linhas que tinham deixado por lá pra pegar umas traíras. O andarilho então alcançou-lhe as rédeas e perguntou se ele queria a varinha pra andar a cavalo, como se não soubesse que o tobiano não carregaria o rapaz; pois bem, já no levar a mão e pegar firme nas crinas do pega-mão (cernelha) para alçar a perna, o tobiano deu uma ronco e uma sonada na venta que mais parecia um  dia de tempo feio, mas para não passar por “cagão” na frente de seus amigos, e para não dizerem que ele estava “afrouxando a mascada”, impulsionou o corpo “livianito” e de vereda confirmou que aquele era um dos tobianos aporreados sim senhor.
           Mal teve tempo de sentar a bunda sobre o fio do lombo do cavalo e o animal já caiu dobrado; foram dois,três pulos agarrado meio no susto, e por pouco o cavalo não lhe matou o “bicho do ouvido”, lhe atirou de todo comprimento no chão, pelo correr da paleta. Foi quando ao provar do próprio veneno, o rapaz levantou-se com suas rompantes e olhou para seus amigos que davam risadas de doer a barriga, lhe deixando ainda mais sem jeito; então resolveu pedir ao andarilho, que ficou olhando o movimento retirado num canto, para que montasse de novo. Na sua cabeça era impossível o que tinha acontecido, como um homem iria dominar um animal daquela maneira, sendo que um aporreado, por ser aporreado não foge ao instinto. O andarilho então pediu aos rapazes que se retirassem meio pra longe; foi atendido.
          Fez exatamente o que havia feito da outra vez; passou-lhe a mão sobre as crinas, deu-lhe um afago na tábua do pescoço, sussurrou uma espécie de oração, saltou de barriga e depois cruzou a perna pro outro lado e saiu ao tranco andando pelo potreiro. Resultou que a gurizada ficou de queixo caído, não falavam em outra coisa, a não ser no fato que estavam testemunhando; desistiram de sair á cavalo para ficar na volta do andarilho e tentar descobrir seus segredos. Passou a manhã. Churrasquearam em ponto de meio dia. Veio a tarde que aos poucos foi se apagando. O capataz e a peonada foram chegando de volta, pois segunda-feira bem sabiam que tinha lida “cedito no más”. O andarilho que ainda estava por lá mateava tranqüilo olhando a vida de longe, “saludou” a todos, que inclusive já lhe conheciam, só não sabiam de suas aptidões.
          Quando todos sentaram a beira do fogo, no galpão grande, conversa vai, conversa vem, o rapaz que levou seus amigos para passar as férias na estância fez ao capataz o relato do que tinham tido oportunidade de presenciar. Mais uma vez a veracidade dos fatos foi posta em dúvida, porque o capataz descrente que aquela história pudesse ser um fato, ainda disse, como a fazer pouco do que tinha escutado da boca do rapaz, e subestimando a fé do andarilho :
         -Amanhã se vocês quiserem tiramos esta história a limpo. Disse ele; que aproveitando o embalo deu ordem ao semaneiro para deixar seus tobianos já embuçalados na segunda-feira, de manhã cedo. 

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)



                                                   16º Capítulo


       Era uma tarde de sábado, a gurizada que estava de férias e recém chegada do povo acomodava os arreios lá pelo galpão da encilha, na estância grande. O capataz e a peonada haviam saído á primeira hora para aproveitar bem a folga, o caseiro, um índio “véio” “buenachão”, tinha ido até a estância lindeira buscar umas mudas que tinha arrumado pra plantar na horta; bueno... o capataz, um índio bueno que gostava muito de uma gauchada recomendou aos moços, por sinal muito influídos, que tivessem cuidado com o que fossem fazer, porque afinal qualquer coisa que por ventura acontecesse dentro da estância era responsabilidade dele, e lhes avisou que voltaria somente no domingo pela tardinha; mas como não se pode ter garantia, e a possibilidade de um lote de guri junto não fazer nenhuma picardia é muito pequena, não deu outra.
       No potreiro da recolhida estavam os cavalos de encilha pra o dia a dia da estância. Um colorado malacara, uma gateada cabeça preta, duas rosilhas e mais três tobianos. Dos três tobianos, dois eram do capataz, uma parelha de aporreados reservada pra os dias de festa, quando num tranco largo saía corredor afora levando os dois de tiro, pra que algum índio ginete topasse o desafio; o outro era um tobiano “véio” da mesma linhagem, por sinal bem parecido com os outros, sangue, raça, procedência e a marca da estância grande; mas estava ali por acaso, alguém deixou a cancela que dava do para-peito do galpão pra o potreiro encostada, e o tobiano “véio” que era o sogueiro cruzou e se foi pastar junto dos outros. Os aporreados apesar de serem aporreados, eram mansos de baixo que só eles, bem “amanunseados”, fáceis de pegar, pra quem não os conhecesse eram tão mansos quanto os demais, porém do lombo qual dos dois mais “veiaco”.
        A gurizada depois de entreter-se acomodando os arreios pra na segunda feira sair junto com os campeiros pra o campo, sentou-se de mate pronto debaixo da sombra grande de um paraíso bem copado, dos tantos paraísos que haviam em frente ao galpão.
 Por ali, entre um mate e outro contavam histórias, causos, falavam de tudo um pouco sorvendo o sabor da vida na campanha, onde á tardinha tudo é muito mais sentido. De repente, um deles olhou direito a porteira e viu que alguém vinha chegando, pensado ser o caseiro nem fez muito caso, seguiu tranqüilo “no más” tomando mate e proseando. Era o andarilho; tão logo chegou perto da porteira já prendeu o grito batendo palma...
O moço que servia o mate era o filho do dono da estância, e foi ele quem mandou que o andarilho passasse pra diante e lhe concebeu pouso sem nenhum problema.
          Vejam só como são as coisas, a gurizada que ainda não tinha aprontado nenhuma, de vereda pensou em fazer uma picardia. Um dos rapazinhos deu a idéia de pôr um dos aporreados no para-peito ao invés de pôr o sogueiro, e pedir pra o andarilho que mangueasse a cavalhada do potreiro no outro dia bem cedo, porém mal sabiam eles que aquela humilde figura de “bombachita” e boina surrada tinha bem mais que o sem fim das estradas pra andar por esse mundo de DEUS, era um homem vivido, cujo mundo havia ensinado muita coisa, embora ainda tivesse muito o que aprender também. Pois bem... recostaram o mate e disseram ao andarilho que ficasse a vontade, dando a desculpa que iriam fazer uma lida nas curta e já voltavam; saíram por trás da casa grande pra que ele não percebesse o movimento e trouxeram a cavalhada pra mangueira, apartaram um dos aporreados e soltaram pra pastar no para-peito da estância, ao de redor do galpão. Depois, conversa vai, conversa vem, um deles buscou a volta do assunto e pediu ao andarilho que trouxesse a recolhida domingo de manhã cedo para que pudessem encilhar pra dar uma volteada, e o andarilho sem pensar duas vezes lhe respondeu que deixasse “no más”, pediu que lhe deixasse um freio meio a mão, dispensando xergão, pois além de despachado não era de fazer muito floreio. Caiu a tarde. A noite grande se estendeu sobre o ermo do lugar. O silêncio da madrugada foi quebrado pelo estalar dos gravetos, quando ainda “cedito” o andarilho levantou do catre onde dormiu um sono tranqüilo e apertou um mate; quando a gurizada adentrou o galpão o andarilho já terminava de tomar o mate do estribo com o freio em punho. Disfarçaram direitinho. Ficaram por ali mateando feito quem não quer nada e espera a hora da recolhida.
           Tão logo saiu do galpão, o andarilho por costume pegou uma varinha pra andar a cavalo, então começaram os cochichos e as risadas da gurizada meio se segurando, na espera de um tombo, que por inconseqüência poderia machucar um cristão que nada de mal teria feito a eles.
             O andarilho foi chegando “despacito” no tobiano aporreado, que vale lembrar, era bem mansinho de baixo, já do lombo nem se fala; foi assoviando, passou-lhe a mão nas crinas, depois uma das rédeas por cima do pescoço, e por incrível que pareça conseguiu enfrená-lo sem nenhum problema. Por vaqueano o andarilho percebeu a desconfiança do cavalo, e viu que seus olhos tinham bem mais que simples visões de quem lhe pegara pra botar freio, foi então que afagou-lhe o redemoinho da testa com sussurros de uma oração que nenhum dos rapazes pode ouvir nem perceber; saltou de barriga primeiro, depois passou a perna direita pro outro lado e enforquilhou-se. Quando todos esperavam que o cavalo arrancasse mandando lombo, veio a  grande surpresa, para o espanto de todos; um tranco largo a meia rédea como se fosse o pingo mais bem domado entre os três tobianos, quando na verdade era o mais “veiaco”, porém pra um homem com a vivência do andarilho não; porque bem sabe que a fé quando elevada ao pensamento tem poder total sobre tudo.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)


                                                      15º Capítulo

 
        Ao adentrar um povoado num dos tantos rincões que existem a DEUS dará na imensidão da campanha, o andarilho escutava um floreio de gaita e pandeiro que se espalhava pelos ares; foi seguindo no rumo do sonido até avistar uma ramada na beira de uma cancha reta, onde a gauchada toda reunida formava o entrevero nos domingos de carreira. Não podia ser diferente, morava o vivente escorado na copa, sentado na carpeta jogando um truco, atirando o osso ferrado na cancha de tava, enfim... calaveragem pra todo lado;  tinha carreira atada e não livrava nem chuva no dia, ainda bem que o dia estava lindo, o sol primaveral destapava o ermo do descampado e espichava sombras redesenhando silhuetas sobre a terra.
          No meio de todo aquele movimento, que aos poucos aumentava cada vez mais, o andarilho reencontrou um velho amigo de infância, que por força das circunstâncias não via a muitos e muitos anos, e que mesmo assim não deixava de reconhecê-lo, seja lá onde estivessem. Sabia de sua história, fazia parte do seu passado, e além de tudo sentia-se compadecido com seu viver andarilho.
            Num “saludo” cordial como de costume pegaram a golpear um trago e botar o assunto em dia, foi bem assim que “despacito” mataram a saudade, não só dos velhos tempos, mas, um do outro. Refletiram sobre a vida, sobre as transformações impostas pelo tempo; o andarilho estava prosa de tal maneira que jamais alguém tinha visto antes.
Certamente que não era um encontro ao acaso, pois pra tudo na vida tem um motivo.
            O seu amigo de infância trabalhava como peão de uma estância “grongueira” daquela região havia mais de dez anos, pode parecer pouco, mas considerava-se um homem feliz, sentia-se bem e parecia não sentir falta de nada,  tendo um ofício na vida, e saúde suficiente para honrar seus compromissos. Era um homem respeitado por onde quer que estivesse, por isso os proprietários dos potros que estavam inscritos pra correr  lhe confiaram o julgamento da tal carreira. Mais ou menos no início da tarde começaram os arremates, era aposta pra todo lado, cada um botava confiança nas patas de um dos potros e alimentava a esperança de sair por cima, tinha gente dobrando parada e jogando o que tinha e o que não tinha pra pagar aposta. O andarilho por sua vez se retirou pra um lado, ficou observando o movimento e assim se achava entretido em meio a todo aquele vai e vem.
             Os jóqueis foram pesados para que os que tinham atado a carreira estivessem certos de que o contrato estava sendo respeitado, logo em seguida os potros vieram pra cancha num trancão de convidado, cada qual mais bem tratado, com energia de sobra e loucos por um retoço. Era pingo erguido na rédea, fusta ao correr do braço, trote largo e um “galopito” pra reconhecer o trilho e aquecer o sangue. Tudo certo, o povo veio pra beira da cancha onde num grito de “se vieram”! Saíram do partidor dois potros mais espichados que fio de arame farpado, era focinho a focinho, metro a metro da cancha, vinham mais agarrados que guri com medo quando se agarra “nas calça” do pai; foi até lindo de ver quando cruzaram a bandeira, vinham os dois jóqueis debruçados nas orelhas dos potros que montavam, levantando na rédea e proseando firme como quem  bota tenência pra firmar o pataleio, sem contar que já vinham puxando algum “laçassito” dos trezentos metros em diante. Dada a sentença, foi anunciado o vencedor do páreo por ponta de focinho; entre um revide e outro, que nunca teve um perdedor totalmente passivo, corria tudo dentro da normalidade na medida do possível; até que lá pelas tantas um grito de sem reserva pegou a alterar os ânimos novamente. Era o grito de um bochincheiro afamado naquele rincão; mas como o orgulho volta e meia insiste em falar mais alto, logo em seguida o amigo de infância do andarilho, julgador da carreira e peão de uma estância grongueira topou o desafio; foi então que as coisas rumaram pra outro lado, começaram a se tourear no dinheiro, depois vieram os deboches, até que pra o fim a carreira já era o de menos. Dois tauras contrapontearam até parar de ponta um pro outro, olho no olho, frente a frente, adaga em punho; quando o tempo fechou entre os dois, abriu-se um clarão na ramada, e nada pôde ser feito porque no bate e rebate a “mala-suerte” troca de lado por bem pouco ou quase nada,  um deles se quedou degolado no chão duro de terra; era o peão de estância respeitado, mas que por orgulho ou sabe-se lá o quê acabou se envolvendo com um bochincheiro desses que levam tudo a ponta de faca, literalmente. Lá estava o andarilho, firmou os olhos em seu velho amigo de infância que á muito tempo não via, mas que DEUS lhe dera a oportunidade de reencontrar pelo menos pela última vez, o que não esperava é que fossem se despedir daquela maneira; mesmo assim sentiu-se conformado em poder lhe dar um último abraço; foi quando virou as costas e seguiu sem rumo certo pensando na vida que aos poucos cobra seu preço...