Sobre uma alma andarilha que apareceu na querência
Ninguém sabe de onde veio
aquela alma andarilha,
com dois cavalos de encilha
que dava gosto de vê-los...
um zaino mocho retaco
da cabeça encarneirada,
e um baio que refletia
o clarão da lua no pêlo.
Apareceu na querência
deixando um ar de mistério,
como todo índio gaudério
que sempre guarda um segredo.
No perfil de forasteiro,
um jeito esquivo e velhaco,
de quem pras vias de fato
jamais oferece um dedo.
Era uma noite qualquer, igual a tantas outras noites que se estendem nos bolichos, pelos rincões de fronteira; a gauchada, entretida, golpeava um trago, e mais outro...
proseando, contando causos, e se valendo de fatos que lhes davam motivo de sobra
para gaitadas de doer a barriga; os que não estavam a par da conversa, carpeteavam concentrados, orelhando o baralho. E como de costume sempre tem alguém escorado na porta, cuidando o movimento no entra e sai de quem chega, lá estava um desses
“bombeadores”, pois, foi quem escutou um bater de cascos compassado pelo tranco largo que parecia cada vez mais perto; como de fato era mesmo, se aproximava uma gaúcho bem a cavalo, trazendo um baio de tiro que vinha lindo no costado do zaino retaco, tranqueando parelho, sem fazer peso algum na mão que firmava o corpo da trança de um cabresto de duas braças e com presilhas bem reforçadas.
Por se tratar de um desconhecido, deu apenas pra descrevê-lo, pra que alguém que por ventura já tivesse lhe visto por aquelas bandas o reconhecesse; porém, era um estranho mesmo, ninguém sabia, nem tinha conhecimento daquele quera, nem de algum que fosse pelo menos parecido com ele naquela região. Enquanto isso, lá fora, chegando em frente ao bolicho, o desconhecido apeou, foi afrouxando a cincha do zaino, e passando o cabresto de cada um dos cavalos entre as forquilhas dos galhos de um cinamomo que parece ter sido plantado alí estratégicamente para tal finalidade; descalçando as esporas, as dependurou junto com o mango no cabo prateado da adaga cortadeira que fazia volume embaixo do pala de lã crua, que bem parecia surrado pelo rigor dos invernos; sacou de pronto o sombreiro de copa alta e aba curta, mas só pra tirar o barbicacho que vinha firme “nos queixos” , e descansá-lo na nuca.
Mal botou o pé pra dentro do bolicho e já foi prendendo um “saludo” com seu sotaque portunhol: “buenas noites senhores”! E seguiu a passos largos na direção do balcão, onde ficou arrinconado depois de pedir uma de canha e um liso fundo para que pudesse servir-se a gosto; puxou de uma naco de fumo e de uma faca virilheira (pitoca) para fazer um cigarro de palha, que por sinal, tinha um maço tão fino que dispensava escolha; em seguida prendeu fogo no palheiro que exalava o cheiro, enquanto seus olhos matreiros, por de trás da cortina de fumaça, campeavam algo que ninguém sabia o que era.
Se curiosidade mata, o que estava na porta escapou porque não era a sua hora, pois, intrigado com a imagem daquele forasteiro, não se sofreu em tentar desatar o nó que ele parecia trazer na garganta; buscando a volta por longe, primeiro puxou assunto, para depois, no decorrer da conversa, com todo cuidado para evitar um estouro, começar a indagação para saber mais a respeito daquele ser misterioso que apareceu de a cavalo, como surgisse do nada, campeando sabe-se lá o quê... aliás, o dito cujo não mudou seu jeito nem mesmo quando lhe foram feitas perguntas que, ou respondia silabicamente, ou com entrelinhas metafóricas, que acabaram por intrigar ainda mais os que ali se encontravam.
Assim se deu um breve diálogo:
-Bem a cavalo não seu!?
-Hum.
-Noite linda pra quem vai cruzando estrada, bem montado, prevenido pra um caso de precisão!
-Éh.
-Há muito tempo não se via um xirú desta templa aqui pelas pulperias; gaúcho, “gaúcho”, como queira...
O fato é que se vivia um tempo de apreensão, onde qualquer que fosse o desconhecido já se tinha razão de sobra pra desconfiar, sendo que naquele rincão, beirando a estrada da linha, por entre os marcos, os abigeatários cuidavam o movimento das rondas, nas altas da madrugada, esperando que a coisa acalmasse á espreita de uma investida, cujo rastro deixado se estendia no rumo dos contrabandos, sempre que as cercas eram cortadas e uma ponta de gado seguia em reponte pro outro lado, na direção do nunca mais.
Sobre tais comentários o forasteiro não passou do: -Hum! Éh!
Daí vieram as perguntas:
-Como te chamas paisano?
-De onde vem? Pra onde vai, levando um pingo de muda?
-Não é por nada, mas anda procurando algo, ou alguém?
Foi quando então, serviu-se do último trago que ainda tinha na garrafa, virou-se de frente pra porta e respondeu-lhe:
-Soy doble-chapa e terrunho,
venho de um tempo distante,
e daqui sigo “adelante”
buscando um rumo seguro;
por fronteiro, pêlo duro,
ser andarilho me basta...
descendente de uma casta
que ilustra os versos de Hernandez,
por isso onde quer que eu ande
vou tranquilo, não me apuro,
na direção do futuro
montando um zaino estradeiro,
e um baio que lume inteiro
pra me guiar no escuro.
Golpeando o último trago, pagou a conta e sem demora, saiu de manso pra fora, firme “no más”, sem tropeços... trocou as garras do lombo do zaino pro lombo do baio, alçou a perna, e num “saludo” com jeito de quem retorna pegou de novo a estrada. Mas, o “Perguntino” não se dando por satisfeito com as entrelinhas deixadas no ar pelo forasteiro, ou paisano como ele mesmo resolveu chamá-lo, criou coragem para seguir-lhe os passos, e assim fez, de longe, para tentar descobrir quais eram realmente suas intenções; foi indo até que na volta de um cerro o cavaleiro andante acabou sumindo no meio da cerração que estava cada vez mais baixa; então, voltou pro bolicho ainda mais encucado, e só no outro dia foi até o ponto em que desistiu de seguí-lo... o mais curioso nisso tudo, é que sequer ficaram marcas de cascos sobre a terra, e dalí pra frente ninguém havia enxergado movimento nenhum, nem sabia dar notícia de alguém com tal perfil.
Mesmo depois de muito tempo, ainda paira no ar um mistério, sobre uma alma andarilha que apareceu na querência.
ZECA ALVES.
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