sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)



                                                      14º Capítulo



             Tresnoitado de uma noite mal dormida, o andarilho não andou muito mais que meia légua e avistou um rancho de campo de uma chácara, que havia mais adiante da tapera em que dormiu da última vez. Com fome e um tanto judiado por consequência dos fatos, resolveu bater os costados para dar mais uma ressojada e talvez arrumar um prato de “bóia” com mais sustância pra o sustento do corpo...
Era a chácara de uma família de agricultores que tirava da terra a subsistência,  ali naquele rincão, embora num ermo de querência, vez por outra os moradores eram vítimas de furto e abigeato, bem por isso a força das circunstâncias gerava desconfiança entre os homens, tão logo avistassem qualquer pessoa estranha por aquelas bandas; pois bem... O andarilho chegou em frente ao rancho, e do lado de fora do para-peito, d’onde cruza o corredor, bateu palmas e prendeu o grito:
         -Ôooo de casa! Exclamou. Foi quando saiu de trás do galpão, onde havia uma horta, uma senhorita , que de longe já vinha bombeando com desconfiança pro andarilho, que até então jamais tinha sido visto por aquela região, quando vinha em direção a ele perguntar o que queria, surgiu o dono do rancho, um senhor de idade, que vinha chegando do cercado onde andava capinando e escutou o grito prendido. Sem muita receptividade, nem “saludou” direito e de vereda indagou-lhe o que queria; e o andarilho sem demora lhe respondeu. Logo em seguida teve de responder mais um lote de perguntas.
            Bueno... sobre o pouso, o “home-véio” lhe disse que não, e explicou o motivo sem inventar nenhuma desculpa,  foi sincero no sentido mais amplo da palavra; mas, quanto a dar-lhe comida não pensou duas vezes; apontou pro andarilho um lugar na volta do corredor que servia de pouso pras tropas que em outros tempos eram tantas, e lhe disse que enquanto estivesse descansando por lá poderia ficar tranqüilo que não lhe custava nada dividir o pouco que tinha com mais um.
             E assim foi; o andarilho baixou no rumo do pouso, bem d’onde havia um capão de mato e uma sanga de águas rasas para matar a sede, acomodou-se por lá, onde resolveu que iria passar uns dois ou três dias para refazer-se dos rumos, e só depois voltar a andar caminhos; pra trás, no rancho onde havia chegado, deixou as dúvidas e a desconfiança de quem habitava o lugar.
             Em ponto de meio dia, enquanto olhava a vida de longe, o andarilho ergueu os olhos na direção do tal rancho de campo, e avistou que alguém vinha cruzando a cerca do para-peito pra o lado do corredor; era a senhorita que vinha trazendo um prato bem servido para lhe ofertar; chegando lá, estendeu-lhe a mão para alcançar o prato e desejou que fizesse bom proveito; o andarilho muito agradecido, sentou num galho de corticeira que havia ali pelo chão, tirou a boina e descansou sobre um dos joelhos, e com o prato na mão ergueu os olhos pra ela e desejou que DEUS lhe abençoasse. A senhorita, por sua vez, desejou-lhe o mesmo e sem demora deu meia volta e seguiu no rumo “das casa”.
             Depois de encher a barriga, o andarilho ainda com o prato e os talheres na mão levantou-se e foi até o costado da sanga, para pelo menos enxaguar o prato e tomar um pouco d’água; neste exato instante, notou que havia um objeto luzindo entre os pastos que se debruçavam sobre a terra por estarem altos, dobrando a o meio, bem d’onde havia uma plancha (tábua larga que as lavadeiras usam pra lavar roupa na beira da sanga). De vereda firmou os olhos e deu de mão; era um relógio, e pela delicadeza só poderia ser de alguma senhorita; como de fato era mesmo.
           Eis que o dia foi passando lentamente, já no “finzito” da tarde,  horizonte rubro no sol pôr, o andarilho já preparado pra passar a noite por ali bombeou pro lado do rancho novamente, dessa vez quem vinha na sua direção era o “home-véio”; estava aí a sua chance de mostrar quem realmente era. Aquele senhor que lhe recebera com desconfiança agora estava prestes á saber melhor sobre o homem com quem se dispôs a dividir o alimento da família. Prosearam por um bom tempo. Foram indagações e respostas sempre olhando firme nos olhos um do outro. Ao final da conversa, o andarilho sem pensar duas vezes perguntou ao senhor se ele conhecia aquele relógio; a resposta foi exatamente o que se esperava. Ele respondeu que sim, era o relógio da sua filha; aquela que ao meio dia tinha ido levar comida ao andarilho. Ainda disse que ela havia procurado por tudo, e que não lembrava de maneira alguma onde poderia ter deixado, mas certamente teria tirado para lavar as roupas e esquecido no costado da plancha de tábua, á beira da sanga. O fato é que o andarilho por vaqueano deu a primeira prova de não ser um homem de má fé; do contrário não teria nem porque mostrar o relógio, porém, como não costumava se apossar do que não lhe pertencia, fez questão de devolvê-lo sem pedir nada em troca, porque apesar dos pesares,  naquele momento a confiança seria sua maior conquista.  
              
          

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)

 

                                                        13º Capítulo



      A cerca de mais ou menos dois dias, o andarilho vinha dormindo pelas taperas e enganando a fome com pitangas, laranjas, bergamotas, enfim... Se rebuscando conforme a volta.
      Foi numa dessas taperas que, bombeando o céu estrelado, lua em quarto crescente, de repente o andarilho ouviu de muito longe um bater de cascos, que mais parecia uma “escramuça” ligeira, como se alguém estivesse peleando bem montado, ou até mesmo um galope em desatino para entregar um chasque sabe-se lá de onde, nem pra quem. Aos poucos o turumbamba de patas foi “mermando” e se aproximando na cadência de um tranco largo que parecia cada vez mais perto; ao erguer-se do chão onde estava acomodado pra passar a noite, o andarilho, já desconfiado estendeu a mirada ao longo do campo largo, por debaixo do arvoredo, mas, inconformado campeou na volta da tapera pra ver se avistava quem estava se achegando, ou seu era alguém que andava caçando nos arredores, o fato é que queria ter certeza de que movimento seria aquele.
Pois bem, ouviu-se no fundo daquela noite um eco que vinha de longe,ganhando os ares da fronteira num sapucai desdobrado, tal como faziam os sentinelas nas margens do rio Uruguai, contraponteando o silêncio; pra o andarilho aquilo serviu como um chamado.
Deu de mão na mala de garupa e num “ponchezito” velho surrado que lhe servia de abrigo nos rigores do inverno, e saiu no rumo daquele eco que ganhava os ares da querência, campo afora, noite adentro. Agora, era um passo e mais outro, querendo enxergar ao menos a silhueta que produzia toda aquela sonoridade, como num escarcéu dos tempos de guerra.
        Andou por léguas e mais léguas, e quanto mais se aproximava, mais parecia ter que andar, a madrugada foi se estendendo, os quero-queros alardeavam a cruzada do andarilho pelo ermo dos descampados; a cachorrada latia e uivava como a enxergar além daqui, do outro lado da vida. Bem no fim, o andarilho se deixando levar pela ânsia de encontrar alguém que talvez por bem montado lhe fizesse caminhar um tanto além de onde estava, foi pego pelo cansaço; foi quando resolveu parar n’outra tapera, distante daquela onde começou a ouvir as “escramuças”. O corpo já mais cansado que o de costume pedia vaza pro descanso. Voltou a se acomodar num lugar mais abrigado, e no meio da oração costumeira o sono lhe pegou de jeito. Vieram os sonhos...
        Apresentou-se pro andarilho, um índio charrua que montava de em pêlo, um cavalo tobiano salgo ainda bruto de rédea, porém, manso de lombo como ele só; lhe estendeu a mão “saludando” em seu idioma indígena, e lhe apontou na direção de um cerro, dando a entender que por lá havia um enterro de dinheiro.
        Ainda confuso, sem saber se aquilo era um sonho ou um desdobramento, o andarilho ferrou enfim no sono, corpo e alma caíram no poço fundo do descanso. Restavam apenas alguns instantes de sossego, já que passou quase toda a madrugada em volta com seus mistérios; no romper da madrugada, o sol foi aos poucos destapando a silhuetas que se estendiam no sem fim do horizonte, quando bateu na cara do andarilho foi como se DEUS lhe botasse a mão no rosto e dissesse:
            -“Acorda meu filho, pega teu rumo e vai pela vida, pra um dia quem sabe encontrar as respostas de tudo aquilo que ainda não conseguistes entender.”
       Foi quando então, mais uma vez, o andarilho botou os ossos de ponta, descansou a mala de garupa sobre o ombro, e de novo seguiu a andar caminhos.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)


                                                            12º capítulo


       Numa das tantas estâncias que o andarilho acostumou-se a chegar por saber que encontraria pouso certo, caia a tardinha quando bateu os costados. Num ritual costumeiro chegou de manso, o capataz e a peonada já lhe conheciam de longa data.
       -“Buenas tardes” senhores! Disse o andarilho.
      Ouvindo de pronto a resposta: “Buenas seu”! Passe pra diante, vá sentando...
      O mate “empessava” a correr de mão em mão, o descanso pegava o rumo de uma boa prosa, “sonava” um radinho que reverberava dentro do galpão. Falando da lida, contado causos e patacoadas, surgiu o assunto sobre um cachorro ovelheiro, desses que depois de tantas gauchadas envelhecem na lida e se fazem parceiros até o fim. Por conseqüência da idade que somava, já não era mais o mesmo, ainda tinha o tino e a coragem, mas não era mais aquele que em outras volteadas bastava prender o grito que atendia de vereda. Mesmo assim, todos ainda tinham muito apreço por ele, porém naquele dia, o capataz da estância grande não estava muito conforme para entender as atitudes do cachorro “véio” que atendia pelo nome de Campeiro; estavam todos sentados, mateando, e o cachorro por companheiro, veio pra volta, depois de receber o andarilho aos latidos, dando sinal de que alguém vinha chegando. O andarilho, conhecedor da volteada lhe deu uma mimada, dessas que qualquer cachorro amigo abana a cola faceiro, e foi se achegando. Voltando ao assunto... o fato é que o cachorro andava na volta, e vez por outra se passeava em meio aos que ali estavam mateando; Quando ouvia alguém lhe ralhando atendia feito guri sem vergonha, que obedece já preparado pra fazer arte de novo.
           -Vai te “deitá” Campeiro!
           -Já pra lá cachorro “véio”!
           -Caminha vai te “deitá” rapaz”! Eram as ordens dadas pelo capataz ao ovelheiro, que se enfiava na roda de mate costeando um e outro como a pedir carinho. De repente, o ânimo do responsável pela estância foi se exaltando, pegou a se arrenegar
reclamando do velho parceiro de lida como se tivesse esquecido todos os méritos dele.
           -Que cusco bem atoa esse! Exclamava.
           - Caminha pra fora campeiro, tu não tem onde te “esfregá” rapaz? Vai te “cossá” numa tuna! Seguia...
            Veio a sentença: Olha cachorro “véio” tu não te esquece que tu “tá” me devendo uma! Tu não pensa que eu esqueci que tu andava te fazendo de surdo comigo campo afora! A hora que eu te “pegá” tu me paga. Dizia o capataz.
              Como de costume, o dito cujo andava sempre com uma varinha; e não deu outra, foi pra lá e pra cá e deu de mão na varinha que tinha deixado no costado do banco em que estava sentado; com a outra mão agarrou o cachorro d’uma pata e seguiu exemplando, porém, descia a varinha que assoviava cortando o vento e dava por onde pegasse, tanto foi que numa daquelas acertou no olho do pobre animal que chorava e se retorcia tentado livrar-se das mãos do homem. Diante de tudo isso, o andarilho vendo que já era demais, não pensou duas vezes antes de intervir para botar um fim naquela crueldade; daí a coisa entaipou de fato... O capataz já de cabeça quente, um tanto fora de si, investiu contra o andarilho que por sua vez  também não estava de sangue doce, mas peleava em justa causa. Eram dois touros frente a frente, olho no olho, e seus instintos falavam mais alto. O cachorro ovelheiro que livrou-se das mãos do capataz graças ao andarilho, talvez pressentindo o que estava por vir latia na volta, como a pedir que botassem um fim naquilo tudo que estava acontecendo; de nada adiantava. Lá pelas tantas vendo a coisa feia o capataz puxou do trinta, já engatilhado, e apontou pro andarilho. Ouviu-se o estouro de um disparo...
           Vejam só como são as coisas. O balaço rasgou o chão de terra do lado de fora do galpão da estância, justo porque naquele momento em que o capataz foi desferir um tiro contra o andarilho o cachorro “véio” avançou no seu braço fazendo “as vez” de protetor. A arma caiu no chão, agora os papéis estavam invertidos, o cachorro não largava o braço do homem que se retorcia e tentava livrar-se das presas do ovelheiro, “grunindo” de dor. Quando conseguiram apartá-los, já não havia mais nem rastro do andarilho que pegou o mundo por conta.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)

                                                
                                                    

                                                      11º capítulo


            Havia um rancho de campo num fundão de corredor onde volta e meia o andarilho estava de cruzada; ali morava um casal de campesinos e seus filhos. O homem era um domador à moda antiga, a mulher, uma dessas donas gaúchas que vivem pra o marido e pros filhos, sempre na volta de uma hortinha, uma criação de galinhas, enfim...
O andarilho percebeu que vez por outra,  as crianças que brincavam tranqüilas na volta do rancho saiam num “trotezito” miúdo no rumo inverso da estrada, como quem vai se esconder meio as pressas e pra não deixar isso claro tenta disfarçar. Certamente que isso acontecia quando as crianças lhe enxergavam.
            Lá, certa feita, o andarilho cismado com o que acontecia, resolveu chegar como quem não quer nada e sondar aquele movimento. Bateu palmas em frente á cancela... de pronto a dona do rancho saiu para atendê-lo:
          -“Buenas tardes” senhora! Disse o andarilho.
          -“Buenas tardes”! Lhe respondeu a mulher.
          Assim, feito quem não quer nada, indagou a ela, que desconfiada respondeu sobre onde estaria seu esposo.
           -Foi buscar uma potrada aqui na estância dos fundos, mas já deve estar chegando. Disse ela.
           -“Bueno”... mil gracias. Respondeu o andarilho.
           Foi quando a dona lhe perguntou se queria deixar recado, fazendo que não sabia que aquele era um andarilho; mas, de vereda, ouviu da boca dele que não, que iria esperar ali mesmo, pelo corredor, para falar com o domador. Sentou-se em meio ao macegal que tomava por conta um barranco beirando a estrada, e ficou tranqüilo “no más” esperando. As crianças já não voltaram a brincar ali pela frente, retoçavam no terreiro, entre o rancho e um “galpãozito” de madeira.
             Lá pelas cansadas se ouviu ainda longe o badalar de um cincerro que aos poucos foi se aproximando somado ao bater de cascos dos potros que vinham por diante, acolherados; eram os potros da tal estância dos fundos que o domador tinha ido buscar. A mulher, acostumada ao movimento de seu esposo, saiu a passos largos para abrir a porteira grande , e depois rumou pra o corredor onde volta e meia fazia um fiador
atacando os potros para que entrassem na direção da mangueira. “Bueno”...cruzou de a cavalo pro lado do galpão, e boleou a perna sem nem notar que o andarilho estava sentado no meio do macegal; foi quando a mulher se aproximou do domador que tirava os arreios do lombo de um bragado tronqueira, e acomodava sobre um cavalete no oitão do “galpãozito”, e lhe disse que havia um andarilho esperando na beira do corredor, pois havia chegado em frente ao rancho e perguntado por ele; como não estava, resolveu sentar lá pelos barrancos e esperá-lo, sem pedir absolutamente nada.
           Mesmo antes de sacar os potros da “acolhéra”, o domador descalçou as botas, arremangou as bombachas e saiu pisando firme lá pra frente.
           -O que poderia estar querendo, além de um pouso?! Pensou o domador.
            Muito bem, ao avistar o andarilho que veio em sua direção, num “saludo” recíproco se deu uma prosa simples e objetiva. O andarilho por vaqueano pediu um canto pra descansar e seguir viagem no outro dia; pouso concebido.
        Ali, na simplicidade daquele rancho, reluzia a nobreza espiritual de pessoas simples, que fazem dos princípios morais da sua gente um motivo para tratar sem nenhuma indiferença o seu igual. Pegou a cair a tarde. O domador e a dona do rancho sentaram na sombra de um paraíso bem copado que sombreava o oitão e chamaram o andarilho pra perto, mandando que se abancasse para matear também. Sem demora ele veio de onde estava, e as crianças a essas alturas lhe espiavam pelas frestas do galpão, entre sussurros e cochichos.
        O domador puxou conversa, e o assunto não poderia ser outro, senão saber de onde vinha o andarilho, e sobre andanças, domas e gauchadas. Foi aí que ele, por vaqueano, ganhou a chance de descobrir o porquê do medo das crianças ao lhe avistarem.Lembrou dos tempos de moço quando ainda atacava um pouco nos galopes de potros quando haviam revisadas pra carreiras e provas de redomão;foi um homem firme nos arreios.
         Entre um mate e outro, a prosa foi se estendendo até que o domador lhe pegou de ajudante por uns três, quatro dias, até que a potrada estivesse sujeita, afinal, toda ajuda sempre é bem vinda. Caiu a noite, a janta foi servida, chegava a hora do descanso para se refazer do dia que cruzara, e preparar-se para o dia seguinte. As crianças já tinham ido dormir, “cedito”.
         No outro dia, bem cedo (tempranito), o andarilho nem bem botou os ossos de ponta (levantou-se), e já fez fogo, um mate “bueno”, e repontou os potros pra mangueira, depois, veio o domador pra tomar uns mates e empessar o dia, ainda de “madrugadita”; já tomando o mate do estribo o domador pediu ao andarilho que desse uma engraxada num maneador de couro de touro, e n’outras cordas de doma que estavam penduradas no “galpãozito” de madeira, enquanto ele ia tirando leite, apojando a vaca mansa; rumaram, cada um pra fazer a parte que lhe tocava.
         Entretido com o engraxar de cordas, o andarilho de repente ouviu um “bom dia seu, o senhor sabe onde “tá” meu pai”?!  Num tom de voz que mesclava inocência e insegurança; virou-se devagarzinho e respondeu:
         -“Buenos dias”, vi sim; ele “tá” tirando leite; já deve estar chegando”.Disse o andarilho.
          Puxou assunto com o menino que foi se amansando aos poucos, e já não demonstrava mais desconfiança. “Bueno”... passaram os dias, chegava a hora de pegar a estrada novamente, e pra felicidade do andarilho que fez um costado pro domador por uns três ou quatro dias, ele ouviu o menino dizer para os outros que aquele homem que cruzava na estrada volta e meia, não era o “véio” do saco coisa nenhuma, e não pegava as crianças como os mais velhos diziam, pois conversou com ele e notou que aquele era um ser humano como qualquer outro, e que estava por ali pedindo nada mais, nada menos que um canto pra descansar, e ofertando em troca uma ajuda ao seu pai.
          Num “saludo”, o andarilho despediu-se, e seguiu com léguas por diante desejando que DEUS abençoasse a todos.
           

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)





                                                    10º Capítulo



       Distante um par de léguas da fronteira, o andarilho vinha rumando a estrada asfaltada, quando avistou a mais ou menos uns duzentos metros de distância, a sede de uma estância grande de arquitetura antiga, e no lampejo de um momento resolveu chegar para pedir pousada; já no primeiro bater de palmas chamou olhares pra fora, e sem demora foi recebido pelo capataz que lhe perguntou o que andava procurando, foi quando o andarilho de vereda respondeu que andava cruzando estrada e queria apenas um canto para que pudesse descansar. O capataz lhe pediu que aguardasse por ali que já voltava; não levou nem cinco minutos e estava de volta, lhe mandou passar adiante e apontou pra o galpão donde sempre havia fogo grande, erva “buena” pra um mate, e um “catrezito” num canto pra um causo de precisão, e era neste mesmo galpão que se recebia os convidados que volta e meia davam propósito pra um churrasco gordo.
       Por ali o andarilho acomodou o catre bem contra o canto, chegou pra perto do fogo, encilhou um mate, e pegou a olhar a vida de longe como de costume. Os dois peões de campo ao chegarem da lida bem de “tardezita” logo perceberam que tinham hóspede no galpão, e por vaqueanos, acostumados a dividir aquele espaço com quem se achegasse, lhe “saludaram” dando um aperto de mão e um “buenas seu”! No descalçar as botas e pôr umas alpargatas um deles se foi ao banho, pra logo em seguida sair e dar o lugar pro outro, pois naquela noite de sábado teriam mais visitas; eram amigos dos filhos dos proprietários da estância; pessoas supostamente educadas, cheias de dotes artísticos e que se diziam sensíveis sobre tudo o que diz respeito a vida. Por hora, nessas junções, quem sempre fazia “as vez” de assador eram os peões da estância. Bueno... começaram a chegar os convidados daquela noite; em principio o “saludo” era um boa noite em alto e bom tom para que todos se sentissem cumprimentados; Bem “despacito” o andarilho foi se retirando, discretamente, e deitou-se no catre que tinha acomodado pra descansar, e que estava num lugar de certa forma meio aparte do ambiente, porém se ouvia tudo que era dito lá na beira do fogo.
       Conversa vai, conversa vem, um dos convidados pediu pra outro (uma moça diplomada que se dizia livre de preconceitos musicais e sociais) para que contasse a todos sobre uma passagem testemunhada por ela numa de suas viagens. A moça então começou a descrever o que tinha testemunhado. Era o reencontro de dois amigos de infância que tomaram rumos diferentes na vida, um era estudante, acadêmico de agronomia, e outro havia se tornado músico, tocava em uma banda de rock...  
O estudante, um índio gaúcho, bem pilchado carregava consigo a mateira de onde sem demora puxou dos avios e seguiu comungando um mate “bueno” com o outro; falaram de tudo um pouco até chegar no quesito música. Vieram a tona os gostos musicais de cada um; quando o roqueiro falava sobre a sonoridade de sua preferência, o outro, de gosto preferencial pela música campeira não lhe tirava a razão, apenas ficava calado por respeito a opinião e ao gosto do seu amigo de infância. Foi quando a moça que presenciava o fato, e dizia-se eclética começou a se interessar pelo assunto e seguiu de longe observando um e outro. Na vez do estudante falar da sonoridade de sua preferência, o roqueiro dava seu ponto de vista, mesmo que de um jeito muito cordial, pois a amizade estava acima de tudo, preconceito musical, social, enfim...
O andarilho pegou a escutar o que a moça contava para os demais que se encontravam lá na beira do fogo, confraternizando, golpeando um trago, cortando um assado campeiro; assado este feito com toda a boa vontade por mãos de homens campeiros.
     Ao terminar de narrar o fato que havia presenciado, a mocinha diplomada que se dizia eclética e livre de preconceitos abriu parênteses para falar do seu ponto de vista sobre a quietude do estudante, e as colocações do roqueiro. Bem por isso, talvez sem nem perceber, teve a infelicidade de mostrar o que realmente pensa. Disse que pra ela o rapaz de gosto acentuado por música campeira lhe parecia calado por não ter argumentos, ou por ser limitado musicalmente; já o outro, pra ela parecia muito mais inteligente, desprendido e sensível; chegando assim a exclamar que tinha chegado a conclusão de que os campeiros (que preconceituosamente ela taxava como “os de boina”) são homens que pensam que música no Rio Grande nada mais é que falar em dar pau em cavalo, cabeça de vaca, e pronto. Resumindo... Dentro dessas colocações ela subestimou a inteligência, inclusive daqueles que ali estavam lhe ofertando sempre o melhor talho de uma carne bem assada, porque por campeiros conhecem a volta, e deu asas ao preconceito que traz no pensamento, junto consigo. Foi quando o andarilho pensou consigo mesmo depois de ouvir a colocação da mocinha diplomada:
      Mais vale um campeiro limitado as suas origens, que ser diplomado e se dizer eclético, mas limitar-se ao preconceito com a musicalidade gaúcha”.
        “Pobre mocinha, que DEUS ilumine seus pensamentos para que possa um dia ser feliz pisando com mais respeito no chão onde pisa”.
         Só depois de um tempo passado, foi que a moça caiu em si, e percebeu que aquele tipo de gente a quem ela acabara de discriminar, estava não só dividindo seu espaço com ela, como também estava lhe proporcionando o bem estar sem pensar nas diferenças.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)

                                           

                                                        9º Capítulo



      Depois de andar mais ou menos meia légua, ainda encharcado pelas águas que desabaram do céu sobre a terra, o andarilho topou na volta do corredor com um acampamento; ali estavam três alambradores que empreitaram vários metros de cerca numa estância grande daquele rincão, e pra não perderem tempo no vai e vem pro serviço, fizeram por ali mesmo o próprio parador. Dois deles estavam por ali, já era perto do meio dia, e o outro, por sua vez, foi na sanga que corria logo abaixo de onde acamparam pra buscar água pro mate e pra fazer uma “bóia”; naquele lugar também havia chovido forte, mas graças a DEUS a ventania não tinha sido tão intensa. Bueno... destes que estavam ali pelo acampamento, um estava acomodando as coisas que haviam molhado por conseqüência da chuvarada, o outro estava em volta pra fazer o fogo pegar, já que o aguaceiro além de encharcar o chão também molhou a lenha, mas enfim, um taura vaqueano sempre dá um jeito.
        Ao avistar o andarilho todo encharcado que vinha bem “despacito”, um deles de vereda prendeu o grito num “saludo”, e sem demora viu que tinha dado pretexto pra que o andarilho chegasse pedindo um canto pra torcer os trapos. Os gravetos já fumaceavam e estalavam forte levantando labareda e dando sinal que sem demora o fogo grande estaria aceso. Por certo que os alambradores bem sabiam das dificuldades que se enfrenta por estes fundos de campo, por isso se busca recurso do jeito que DEUS oportuniza, e é também por isso que os homens olham de igual pra igual uns para os outros, e muito pouco ou quase nada custa uma quarteada quando alguém precisa.  Em comum acordo os dois alambradores disseram pra o andarilho que se achegasse “no más”,  um deles ainda lhe emprestou um calção pra que pudesse tirar as pilchas e estender ali por perto do fogo; foi o tempo de cambiar de roupa e o terceiro homem que ali estava acampado vinha chegando de volta com água boa para atender as necessidades daquele momento (o mate e a “bóia”). Mesmo de costas, a silhueta do andarilho parecia com a de alguém que ele não estava conseguindo lembrar bem quem era, até mesmo porque só viu bem ao enxergar o semblante do vivente; para surpresa de ambos, vejam só... mais uma vez o destino botou o andarilho frente a frente com alguém, lhe dando chance para se redimir dos erros; era o mesmo xirú que empreitava numa comparsa de esquila e foi fazer uma brincadeira com o andarilho que levou a sério e num gesto de desacato saiu batendo o ferro branco; atitude que rendeu um final de changa que mal tinha começado. Por certo que o andarilho também o reconheceu.
      Quando um identificou o outro, em questão de segundos, sem muito tempo pra pensar, fizeram silêncio... O andarilho foi levantando bem “despacito” como querendo ir embora, porém, desta vez quem não deixou passar em branco foi o xirú; prendeu-lhe o grito em alto e bom tom:
       - “Ooopa seu!!!! O mundo é pequeno de fato! Quem diria, depois de tanto tempo... cá estamos”. Disse o xirú.
       O andarilho envergonhado não deu sequer um pio, se fez bem de louco e desentendido pensando em retirar-se para evitar que se repetisse o fato desagradável que se deu n’outra feita. Os outros dois que ali estavam de vereda perceberam que era o possível reencontro de supostos desafetos; mas, de repente a surpresa... O xirú, por taura,  mostrando sabedoria disse ao andarilho que sentasse mais um pouco, pois tinham muito o que conversar. Não deu outra; desta vez o andarilho ouviu tudo calado e sem nenhuma reação impulsiva.
       Consciente de que tinha errado, cabeça baixa, ouviu tudo que o outro tinha pra dizer enquanto a “bóia” ia aprontando; nada mais que um pedido de perdão e já foi o suficiente para que contornassem aquela situação constrangedora, mostrando que a hombridade está no jeito humilde de proceder e reconhecer quando se está certo, ou errado, e que o orgulho nem sempre é o que parece, pois de nada adianta ser orgulhoso quando isso impede o crescimento interior do ser.
       Contas acertadas, tudo listo, o xirú alcançou um prato alouçado para o andarilho e mandou que se servisse; muito surpreso o andarilho indagou-lhe:
       - O senhor não vai na bóia também seu?.
        E sem demora ouviu a resposta:
        - Atraque “no más”,“vo tomá” mais “uns mate”.
       Depois de “forrar o bucho”, o andarilho deu uma enxaguada no prato e agradeceu; foi quando o xirú se levantou, lavou o prato e, numa “servidita” mais ou menos seguiu metendo “bóia”. Só então o andarilho percebeu que, praticamente acabou comendo na mão de pra quem um dia se mostrou esquivo.
         Foi bem desse jeito. Sentiu-se encilhado, bem como um cavalo matreiro que depois de tudo ainda tem que agüentar o peso das garras. 

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)


                                               
                                                  8º Capítulo


       Certa feita o andarilho mateava tranqüilo e sereno recostado á beira do fogo, feito todos os demais que se encontravam ali pelo galpão, d’onde nunca lhe negaram pouso, quando de repente surgiu um assunto um tanto comum entre os homens campeiros que tiram o sustento do dia a dia da estância; era sobre o tempo, pois não chovia havia quase quarenta dias e a seca apertava cada vez mais, minguando o pasto verde e castigando a vida no campo; por certo que DEUS sabe o que faz... mas, como de costume, nunca falta quem se desgoste e pragueje,  alguém pegou a arrenegar-se, e ao invés de pedir aos céus pra que a situação ficasse mais amena, seguiu fazendo comentários sem nem ao menos pensar nas conseqüências; o andarilho que se fez mais vaqueano através dos caminhos retirou-se num pedido de licença, um “saludo” e boa noite. Ao deitar-se numa cama de pelegos que fez do lado de fora do galpão, contra um pé de umbu que sombreava o oitão durante o dia, de pronto pegou a fazer a oração costumeira de gratidão e súplica pelas desditas, que vez por outra se dão quase que inconscientemente, através da falta de conhecimento, experiência, ou, até mesmo de orientação sobre tudo que diz respeito á existência; foi quando em pensamento falou com a voz do coração:
      -“PAI NOSSO que estais no céu”, perdoai os que de uma forma ou de outra acabam elevando as próprias penas através de manifestos compreensíveis aos olhos de quem sabe e sente que realmente estás acima de tudo e de todos, sendo que aos olhos da matéria é preciso fraquejar para que espiritualmente seja possível evoluir. Gracias por mais um dia de vida e convívio direto com a natureza por estes fundos de campo, onde a vida é mais sentida na flor da pele e no coração. A sua benção meu PAI”!
       No outro dia saltou calando, “tempranito”, nas altas da madrugada; fogo aceso, mate pronto, e de novo léguas por diante pra andejar nos corredores deste mundo “véio” de DEUS... o ar cada vez mais abafado parecia esmorecer o corpo e segurar os passos do andarilho que “assoleado” parava de tanto em tanto para dar um ressojada; nisso uma barra cinzenta pegou a se erguer no horizonte bem ao “despacito”, e vinha engolindo a manhã que mal e mal clareava, aos poucos fechou o tempo num céu de nuvens pesadas...
Primeiro um “ventito” trouxe uma manga d’água, depois começou a soprar mais forte erguendo as folhas do chão em redemoinhos, e dobrando o pendão dos pastos e macegas que rebojavam sem parar. Quando se deu por conta, estava bem no meio de uma tormenta que chegou botando um fim na estiagem, sem ter como escapar, nem tampouco um lugar próximo para buscar abrigo, deitou-se não chão já encharcado, mas com o pensamento elevado aos céus.
-Seja lá o que DEUS quiser; abençoe-me e proteja-me meu PAI! Pensou o andarilho.
      Mesmo naquela situação, sentindo na pele e no coração que era um ser extremamente pequeno perante as forças da natureza, um misto de susto e de fé lhe entregava nas mãos de DEUS... depois de uns dez minutos mais ou menos, o tempo foi se acalmando; o vento e os relâmpagos passaram, a chuva ainda caia, porém de mansinho; ao levantar-se do chão e olhar a sua volta avistou a paisagem totalmente diferente daquela que avistava um pouco antes da tormenta chegar. Banhados e várzeas totalmente alagados, florestas inteiras desgalhadas e retorcidas no entorno daquele
rincão; o mais inacreditável é que, fora o “cagasso” e o fato de estar encharcado, escapou ileso de todo aquele reboliço, não levou sequer um arranhão.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)


                                         

                                                 7º Capítulo



     Vinha de cruzada quase em frente a um rancho de campo, destes ranchos “muy” antigos que ainda resistem ao tempo nos fundões de corredor, quando a sede pegou a lhe ressecar a garganta... ali naquele rancho antigo, morava uma senhora que há muito tempo havia ficado “solita”, o seu esposo já era falecido, um dos filhos rumou para o povo e raras eram as vezes que podia lhe fazer alguma visita, o outro filho ficou por ali mesmo, mas volta e meia empreitava algum “servicito” ali pelas redondezas; bueno...o fato é que por conta dos anos que somava, essa senhora já não tinha mais tanta lucidez, a memória por vezes lhe fazia alguma picardia. Ao chegar em frente a cancela o andarilho sedento bateu palmas, uma, duas, três vezes; tirou a mala de garupa do ombro e descansou sobre os pastos, bem contra os pés; até que surgiu aquela senhora; “corpito” curvo, uma “bengalita” que lhe dava apoio e equilíbrio, e sem demora aproximou-se querendo abraçar-lhe e o chamando de filho. Quando tentou explicar que estava apenas cruzando e chegou para pedir um pouco d’água , que não era quem ela estava pensando, logo viu que de nada adiantaria, pois aquela pobre velhinha era saudosa dos carinhos do filho que rumou pro povo; então o andarilho sentou-se na sombra de um paraíso bem copado que se projetava sobre a grama verde do para-peito do rancho, para unir o útil ao agradável; deu-lhe um pouco de atenção e recebeu em troca, água, pão e um “docezito” caseiro (costume antigo e cordial que as mulheres da campanha tem de receber as visitas com algo bom para ofertar). Conversa vai, conversa vem, depois de um “tempito” ali naquela sombra, o andarilho ergueu-se da banca em que havia sentado, deu-lhe um abraço prometendo que voltaria para revê-la, só não disse quando; também... de pouco adiantaria, já que a memória daquela senhora era um bom tanto falha; num largo abraço, destes que confortam a alma, se despediu e de novo pegou a estrada, agora com a sensação de ter praticado o bem, e ter recebido o bem que desejou a outrem.
         Tanto no olhar da velhinha, quanto no olhar do andarilho as lágrimas corriam, descendo silentes pelo rosto, mesclando um gosto de amor, compaixão e dever cumprido, pois a luz que lhes proporcionou aquele momento, com certeza é a que mais dignifica os seres durante a jornada terrena. Mais uma vez o andarilho ergueu os olhos pra o céu agradecendo por tudo e sem mais delongas acenou dizendo:
              - Fique com DEUS “mamãe”.
              - Bom se fosse. Pensou consigo.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)


                                                 6º Capítulo


       Chegava a safra da esquila, e em pleno verão o andarilho despachava terreno na direção do horizonte campeando uma changa, nem que fosse de cancheiro, pois pra quem precisa, chega a ser um despreso refugar a bolada,  por isso vinha tenteando se rebuscar “nos pila” e garantir pelo menos os vícios por mais um tempo.
Vinha no más, ao passo que bem sabia o quanto conseguia manter a cadência, quando escutou de muito longe, na volta da estrada, o ronco do motor de um caminhão  destes que fazem o leva e traz das comparsas; o ronco foi se aproximando cada vez mais, e o andarilho buscando a volta da sorte parou na beira da estrada de chão para ver se avistava o caminhão, já pensando em atacá-lo para pedir uma carona e quem sabe arrumar uma colocação de cancheiro. Dito e feito! O motorista do caminhão era o próprio responsável pelas esquilas, conversando se acertaram, já que o cancheiro que era de costume naquela comparsa ia unir-se aos demais depois de uns quinze dias porque andava n’outra volteada; o andarilho mais que depressa  atirou a mala de garupa pra cima da carroceria sem nem fazer caso de onde seria aquela empreitada, e pulou pra cima, “saludou” os que lá estavam e acomodou-se num canto até chegarem na primeira estância, onde teria início o calendário de esquila daquela comparsa.
        Bem verdade que nada é por acaso; cruzaram dois mata-burros e por fim, no costado da sombra grande de uma figueira antiga desligou-se o caminhão, estavam em frente ao galpão onde o som das tesouras ecoaria por volta de uma semana, talvez um pouco mais. Quando levantou-se para descer do caminhão, o andarilho ficou surpreso e meio sem jeito; vejam só...era a mesma estância donde lhe negaram o pouso a um tempo atrás, e por conta da fome que sentia se fez valer do instinto de sobrevivência para roubar uma paleta de ovelha assada enquanto todos estavam entretidos com a marcação. Lhe pesou na consciência o fato de ser reconhecido e taxado como ladrão, só não sabia que ninguém tinha o avistado nem de longe no dia de tal fato, e nem sequer dado falta daquele pedaço de carne, pois a fartura e o desperdício foram tanto que nem deu pra perceber. Bueno... trouxeram o rebanho,  Merino Australiano, destes que as rugas endurecem a safra de quem por mais vaqueano que seja vai metendo tesoura mas com o rendimento um pouco mais baixo que nos rebanhos das raças de corte; bom pro cancheiro, porque manear, alcançar pros esquiladores, varrer a cancha e atar os velos “solito” não é uma missão tão fácil quanto parece, depois de pegar o embalo só vai, mas de saída requer um tanto de experiência. Eram três tesouras batendo folha no martelo, e a canha corria na volta mesmo que cachorro de pátio pequeno; em média cada um tirava trinta e cinco, quarenta por dia.Por ali “empessaram” a conviver e se entrosaram “despacito”; mas, como de costume, o andarilho pouco falava; quando a tarde caía, fazia um mate a capricho com os avios que trazia na mala e se apartava pra um lado pra olhar a vida de longe.
          Lá pelas cansadas, um belo dia, alguém largou um brinquedo, desses que se faz às vezes sem pensar, no intento de quebrar a barreira da mesmice, porque ninguém é de ferro; e não é que o andarilho tomou aquilo como ofensa. Daí veio um nó apertar-lhe a garganta, o cansaço pegou a alterar seu ânimo, e a coisa rumava pra um estouro de adaga...não deu outra; tinia folha com folha, bate e rebate, e numa dessas “tajadas” o andarilho “tastaveou” numa pedra, e mesmo assim conseguiu livrar o talho; mais pareciam dois touros de aspa afiada peleando, a turma do deixa disso nem quis saber de apartar, pois o ferro branco quando desce vem cortando o que tiver pela frente; foi quando um grito prendido pelo capataz da estância botou tenência; pararam; de imediato o responsável pela comparsa foi chamado lá dentro, na casa grande... lhe foi dada ordem para que dispensasse os dois, foram então no rumo da estrada, o andarilho voltou a andar caminhos, e o outro pegou uma condução (um ônibus) de volta ao rancho onde morava, num “rincãozito muy lejos” dalí.  

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)







                                                         Capítulo



        De cruzada num “povoadito” distante, destes que se erguem nas lonjuras, vinha o andarilho depois de um dia inteiro caminhando pela estrada da linha, por entre os marcos da divisa. Foi quando escutou vozes em alvoroço que vinham de um bolicho, donde nos finais de semana se dava o movimento da indiada naquele rincão;carreira , tava, truco, “bailezito” de ramada, enfim...se achegou por lá; assim, meio como quem não quer nada, foi campeando o rumo da copa, e já, meio de longe avistou o bolicheiro;
por coincidência era o mesmo homem que tinha um bolicho na cidade, e que volta e meia lhe dava um trago, por costume de servir aos andarilhos que tinham nada mais que a estrada, e a esperança de encontrar um canto pra descansar, e um prato de “bóia” pra matar a fome, pra só depois,seguir na direção do -sabe DEUS- onde chegar.
          Quando escorou-se no balcão da copa, o bolicheiro, por vaqueano deu de mão numa “boteja” vazia que estava atrás do balcão, e n’outra de vinho que ainda estava pelo gargalo, destampou e acomodou um pouco menos de meia para ofertar ao andarilho, que sem pensar duas vezes já empinou o primeiro gole ali no más. “Empessaram” a prosear:  
         - Então vivente!Como andam os rumos da querência? Disse o bolicheiro.
            De pronto o andarilho respondeu-lhe:
         - Vão indo... Disse ele. Ouviram-se as gargalhadas dos que estavam ali por perto e pararam o ouvido para prestar atenção no que diria o andarilho; foi quando então o andarilho que pouco costumava falar indagou ao bolicheiro:
          -Como anda a vida “ermão”?
            E logo escutou o bolicheiro dizendo que na medida do possível, estava tudo bem graças a DEUS, não sobrava muito, mas também, nada faltava, bem por isso dividia um pouco com quem nada tinha (além das estradas e deste mundão “véio” de DEUS para andar). Nisso, o bolicheiro ofertou-lhe um catre forrado de pelego, que estava armado num puxadinho de tábua atrás da copa, se acaso quisesse passar a noite pra refazer-se da estrada, e no outro dia sim, seguir em frente; num gesto ainda mais nobre, o bolicheiro deu de mão numas bolachas e num fiambre e enfiou pra dentro da mala de garupa do andarilho, que sem demora agradeceu e disse: - Que DEUS lhe abençõe.
Já os que estavam na volta, esperando mais algum motivo pra começar o deboche, e as chacotas as custas daquele homem humilde e despilchado que chegou pro lá, pararam as gargalhadas aos poucos quando se deram conta do que estavam testemunhando. Era uma prosa cordial onde as diferenças uniam dois seres humanos a partir do momento em que um estendeu a mão pro outro, exatamente o que se busca pra que de fato se concretize o que tanto se diz: “Dias melhores virão”.
                 Pena que muito se diga e pouco se faça.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)


  




                                                   4º capítulo

         Ao chegar na mesma estância, onde um dia apareceu ajudando um “-índio carrancudo-” e “mala bruja” a carregar um par de arreios, o andarilho deparou-se com as mudanças no lugar; mudanças estas que volta e meia acontecem dependendo da situação. O capataz já não era mais o mesmo, a peonada também não, as porteiras já não ficavam mais sem cadeado, o estabelecimento já não pertencia mais ao antigo dono. A ordem do novo patrão era pra que o capataz, ou, quem quer que fosse não desse pousada para andantes, nem tropeiros...
         Por força das circunstâncias teve de dar meia volta e buscar abrigo ali por perto, do lado de lá da porteira, e já na boca da noite acomodou-se debaixo de um “caponête” de mato que havia do outro lado do corredor, tendo por catre o “pajonal”, que de tão alto já estava dobrando ao meio, e por travesseiro a própria mala; a fome vinha batendo os costados desde cedo, pois, nem pouso nem “bóia” lhe foram concebidos, e por conta das lonjuras também não havia almoçado. Era uma noite de sábado pra domingo, lua no quarto crescente, de repente um floreio de cordeona ecoou pelos ares...vinha lá do galpão onde o pouso de tantas outras vezes já não era concebido; pelo jeito aquele era um prenúncio de festança, pois nestes fundões da querência, estando de folga, qualquer motivo é pretexto pra comer uma carne assada; o floreio foi se estendendo até apontarem as barras do dia, a fumaça levava por diante o cheiro da graxa que pingava nas brasas, e mesmo antes de clarear o dia se avistava o movimento de gente chegando, batendo estribos e esporas, por bem montados; era dia de marcação. A terneirada que estava no potreiro grande dos fundos foi trazida pra mangueira ainda “cedito”. O fato é que a fome apertava cada vez mais o andarilho que nada podia fazer, a não ser testemunhar a fartura de longe.  Desta vez o instinto de sobrevivência “empessou” a falar mais alto, foi quando então percebeu que o movimento pegava o rumo de um mangueirão distante uns cento e tantos metros do galpão, o cheiro de carne assada lhe causava cada vez mais inquietação; pegou a negacear o movimento, buscou a volta num topete de coxilha que havia por de trás do galpão, esperou o momento exato de distração dos que lá estavam, e mais que ligeiro deu de mão numa paleta de ovelha que havia sido posta certamente pra acompanhar o café da manhã; rumou ao lugar onde havia passado a noite, do outro lado do corredor. Depois de matar a fome que lhe consumia, em verdade, parou pra pensar melhor; foi quando então percebeu o porquê das ordens do novo proprietário do estabelecimento:
      - Perante alguns fatos, o melhor jeito é ter precaução. Mas será que não seria melhor tomar ciência dos motivos que fazem as coisas descambarem  no rumo do egocentrismo,  para que possamos todos viver em paz como gostariamos!?
      O andarilho suspirou fundo, e mais uma vez ergueu os olhos pra o céu, desta vez á pedir perdão; levantou-se devagarzinho, e seguiu sua caminhada, remoendo a lembrança de um tempo mais positivo em que andejou pela mesma estrada, no subconsciente uma velha reflexão: “Bons tempos aqueles, pena que não voltam mais”.  Buscou então amenizar a saudade assoviando uma cantiga. 

Neste capítulo fica a homenagem ao poeta maior, Jayme Caetano Braun, cuja luz ainda paira sobre esse plano em forma de versos:
      
         “Talvez, talvez algum dia eu possa voltar ao pago bendito”...              

domingo, 5 de dezembro de 2010

Alexandre Borba Corrêa...


Gaúcho, santanense,  administrador de empresas, 32 anos .
Assim como Bento Gonçalves casado com uma castelhana da R.O.U. (mi flor)
O gosto pelo desenho e pintura vem desde guri, certamente oriundo do pai Carlos Alberto Fernandes Corrêa e também do padrinho e tio materno Arthur César Macedo Borba “in memorian”.
“Cedito no más” incentivado pelos pais , buscou aprimorar-se na extinta escola de artes Aspes e alguns anos depois, realizou algumas aulas ministradas pelo professor e pintor uruguaio Osmar Santos em oficinas na Sala Cultural em Livramento.
Devido às correrias da vida atual e do trabalho na área financeira de uma empresa de logística, dispõem de pouco tempo para dedicar-se as artes.
Mas, nas horas de folga que não são muitas, divide-se entre a fotografia, desenho, pintura e ultimamente arriscando umas notas na sua mais nova paixão:
Uma “Cordeonita Picaça”de 8 Baixos -Universal. Presente da incentivadora e querida avó Leila.
Para retratar (sempre acompanhado de uma boa música nativista) os temas preferidos sempre foram o campo e tudo aquilo que diz respeito ao pampa sureño.

“Livre ao relento, pobre e sem luxo. Nas asas do vento vive o Gaúcho”.
 José de Alencar (1829 – 1877)

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)




  3º capítulo


     Na volta do meio dia, sol a pino castigando o feltro da boina velha surrada, o chão de terra mais quente que de costume, e mais ou menos légua e pico de distância para chegar n’outra estância; mirando “lejos” vinha o andarilho estrada afora, quando de repente parou na sombra de um “caponete” de móleos que brotou em meio ás pedras para um breve descanso;  por instantes o pensamento lhe pôs a refletir sobre a vida, rever o caminho e dividir as lonjuras... olhar disperso, cabeça baixa e uma grama forquilha pra mascar o talo enquanto ruminava alguns “recuerdos”.
       Lembrou de certa feita, quando vinha mais ou menos por aquelas bandas e cruzou por ele um -“índio” carrancudo-,  que vinha firme no más “sentadito” sobre os arreios que ringiam basteira e carona contra um xergão cardado que forrava o lombo de um tordilho vinagre entroncado, que já andava se apalpando, estropiado de pisar as pedras, e acovardado pela judiaria; pois sabe-se lá quanto terreno já havia despachado, e o quanto ainda teria pra despachar até chegar ao destino.Certamente que não haviam as mínimas condições de seguir adiante com aquele animal naquele estado. Mas, como toda ação tem uma reação, não poderia ter sido tão diferente; Tão logo o  -“ índio” carrancudo -  lhe “saludou”, não deu nem cem metros e o tordilho já estava por se entregar , tamanha era a dor que sentia; tanto foi que, num laçasso, destes de riscar o couro, o tal carrancudo assinalou a própria sentença; Dalí pra frente teria de andar com os próprios pés, tal e qual o andarilho. Desencilhou, largou o tordilho que já cansado e dolorido sequer rebolcou-se nos pastos, foi uma sacudida ligeira pra arrepiar o pêlo e deitou-se por conta da dor, para aliviar os cascos; enquanto isso, o tal –“índio”- carrancudo ao emalar os arreios, de vereda se deu conta do quanto lhe custaria aquela atitude impensada, mas, como pra tudo na vida há uma explicação, o andarilho aproximou-se e lhe ofereceu ajuda para que carregassem os arreios entre os dois, dividindo o peso até encontrar um lugar para deixá-los e quem sabe recompor-se da estrada e redimir-se dos erros; aos poucos foram cruzando e deixando pra trás aquela légua e pico que faltava até outra estância. Enfim, chegaram por lá, já era meia tarde, o andarilho calejado chegou tranqüilo; já o -“índio” carrancudo - chegou do avesso,porque a fome lhe repuxava a barriga, e os pés latejavam tanto quanto os cascos do cavalo que ele havia judiado.
         

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

ROMANCE DO ANDARILHO... (Primeira passagem)



                                                  
                                                  2º Capítulo


     
     Numa dessas volteadas, das tantas em que o andarilho acostumou-se; mal e mal clareava o dia, e de pronto deu jeito de “empessar” o fogo, cevar um mate á capricho, recostar as cambonas e de novo pegou a estrada pra andar por este pago de léguas, cujas distâncias se tornavam cada vez mais, parte da sua razão de ser. Deixava tudo encaminhado pra que alguém que levantasse primeiro na estância tomasse uns mates a mais antes de aprontar a lida do dia, para que assim, tivesse mais algum tempo para refletir sobre a vida; era a maneira que ele tinha de agradecer pelo pouso.
      Seguiu então com seus pensamentos em reponte... mais adiante o sol (poncho da pampa) vinha surgindo, e a beira do corredor, bem d’onde havia uma vertente de água boa, com um bom tanto de terreno despachado “de a pézito no más”, parou pra matar a sede...bem sabia, do seu ponto de vista, que aquela água era uma benção de DEUS, pois já naqueles tempos, muito poucos tinham o privilégio de desfrutar de uma fonte de vida tão bem protegida dos atropelos inevitáveis da evolução, porque o tempo é o tempo e não para, mas por aquelas lonjuras ainda não havia chegado a mão do homem ganancioso; bueno... foi por lá que tirou a mala que trazia debruçada sobre o ombro e sem nem olhar se havia alguém por perto ajoelhou-se  e puxou de um caneco alouçado para beber o necessário e depois seguir em frente; um gole e mais outro, e bem pro fim repetiu-se um ritual que somente um ser sensitivo poderia ter consigo:
    - Com as duas mãos em forma de concha pegou um pouco de água para lavar a cara e sentir na pele mais um toque de vida. Depois, com a mão direita mais um pouco d’água, este agora para derramar sobre a cabeça e benzer-se fazendo o sinal da cruz e agradecer ao pai eterno novamente; olhos erguidos pra o céu, levantou-se do chão; quando se deu por conta, havia uma condução parada na beira do corredor com pessoas que admiravam com certo espanto todo aquele ritual. Um aceno apenas, e pôs a mala no ombro pra mais um tanto de estrada, sempre ao “despacito”; sequer indagou aos céus o porquê daqueles olhares tão admirados, tão surpresos e com um certo tipo de dúvida...pois, sabia que as coisas mais simples, pra muitos não são tão simples assim, e que depende de cada um saber sentir que DEUS está presente em tudo, a cada passo, cada gole de vida; quem sabe fosse esse motivo que lhe mostrasse a razão de prosseguir.